sábado, 29 de maio de 2010

Um informe sobre José Honorato: vida e morte

por Firmino Gomes da Rocha

para o meu sobrinho Juracy


José Honorato Lemos nasceu em 1919 em Mar Vermelho, no Estado de Alagoas. Filho de João Antônio de Lemos e de Dona Josefa Maria de Lemos.

Aos 20 anos José veio para São Paulo. Trabalhou na lavoura do Sítio Cerejas no município de Marília. De 1942 à 1944 foi plantador de algodão na fazenda Santa Amélia, no município de Pompéia. A essa fazenda ele chegou sem nenhum dinheiro, só com a coragem: era um jovem de 22 anos... Ali arrendou 3 alqueires de mata virgem, derrubou o mato e plantou a primeira roça de algodão, milho e mandioca. Deu certo: foi um bom ano o de 1943. Logo depois arrendou mais 8 alqueires de mata e plantou tudo: algodão, milho, feijão e batata inglesa. Mas dessa vez não deu certo, e perdemos tudo: deu uma doença na plantação (conhecida como “mela”). Foi um desastre total.

José não se abateu, foi em frente. Seguiu o mesmo caminho: deixou a fazenda Santa Amélia e partiu para as margens do Rio do Peixe no município de Rancharia na alta Sorocabana. Lá chegou sem dinheiro, mas com disposição e coragem. Arrendou 25 alqueires (ou 200 tarefas), derrubou tudo e a terceira roça estava formada.

Nessa época (do início de 1940 ao fim de 1944) estávamos juntos. Éramos ele, seu irmão Cazuza e eu. Também estavam o Raimundo Cearense, o José Nunes e o Pedro Cícero. Formávamos uma turma unida e confiável. Estávamos sempre dispostos ao bem, e para isso estávamos dispostos a enfrentar o que der e vier. Assim, praticávamos esporte: ginástica no campo de malha, boxe, pulo a distância e salto com vara. Também freqüentávamos os bailes no fim de semana.

José era um rapaz fantástico. Organizava todas as tarefas e tinha tempo para ler e escrever. Era forte em matemática e geometria. Tinha um respeito por todos nós. Ele era incrível! Nunca esqueci o que recomendava sempre: “Aqui nós nunca devemos nos envolver com mexericos e fofocas. Devemos, sim, ter condutas próprias: respeitar e retribuir a todas as pessoas – os vizinhos, as crianças, os mais velhos e as mulheres principalmente”. Dizia também que todas as pessoas devem se organizar, cuidar da higiene do corpo e da mente. Sempre nos alertava que o bolso não é cofre de guardar moedas e notas baixas (de um ou dois reais): elas deviam ser colocadas em cima da mesa, bem expostas, para o uso de todos e de cada um, quando precisassem. (O dinheiro de maior valor devia ser guardado.) Dizia também que o amor de pai e mãe, filhos e esposa deve ser amado para sempre.

Em novembro de 1944 viajei para o nordeste. Retornei para São Paulo em 1948. Então ele já era casado, morando em um arraial construído por ele, bem no alto de uma região coberta de palmito, árvores e água corrente entre as rochas. Foi no meio dessa floresta que José Honorato, Raimundo Cearense e o amigo Hirako Ocubo abriram uma clareira e constríram a primeira casa da região em 1946. Foi para lá que José, junto de sua esposa e o primeiro filho, se mudou.

Depois de alguns meses eles receberam a primeira visita. Eram dois amigos: José Quirino e Domingos Machado – dois ex-vizinhos lá do Rio do Peixe que resolveram acompanhá-lo e ali ergueram suas casas. Depois foram outros, e outros mais. De quando em quando chegava mais e mais gente. Com um ano depois já era uma cidadezinha construída de madeira e com ruas de terra: aqui e ali casas comerciais, uma igreja, um posto policial, uma farmácia, um dentista e um ônibus que fazia linha de lá à Santo Anastácio (a cidade mais próxima, cerca de 50 Km de distância). Hoje, 63 anos depois, o lugar é uma Cidade-Comarca: a progressista Mirante do Paranapanema, a princesa do oeste paulista, construída graças a um grupo de camponeses arranjados por ali e inteligentemente dispostos a trabalhar para o progresso do Brasil. Esse grupo era liderado por um jovem exemplar: o camponês José Honorato Lemos, incansável e batalhador – o “cara” da época.

Quando cheguei do nordeste já percebi algumas mudanças. José Honorato se tornou um homem politizado e consciente, um político da esquerda progressista, mas não radical. Conhecedor de direitos e deveres, acreditava estar no caminho certo, sonhava e lutava pela união dos camponeses e operários, e por essa causa lutou até sua morte, sem nenhum radicalismo.

Um episódio: em 1950 foi realizado um encontro de camponeses da região. Nos salões da cooperativa agrícola de Santo Anastácio o objetivo era reivindicar melhores preços para o amendoim e o algodão que tinha os preços bastante defasados, nesse encontro participavam os camponeses, os comerciantes, o prefeito, Sr. Toloza, e o vice, Sr. Luty. A igreja e os políticos da cidade, bem a tarde, antes de acontecer o inesperado, alguns telefones ao DOPS (departamento de ordem política e social de São Paulo) informando que centenas de comunistas estariam reunidos em uma cooperativa planejando um assalto a cidade de Prudente e outras, e depois tomar de assalto a capital de São Paulo e o Rio de Janeiro. Uma mentira que causou a invasão e morte de um sargento e as conseqüências foram desastrosas; o DOPS enviou um avião lotado de agentes armados até os dentes, eram de 4 para 5 horas da tarde quando um pelotão de policiais civis e militares comandados por um delegado do DOPS invadiram a cooperativa atirando para todos os lados: era fuzil e metralhadora atirando para o chão e para o teto e gritando: “seus pés-rapados, canalhas, vão morrer todos seus cambadas...”. Gritavam: “Canalhas, morram!” – e atiravam mais. Um sargento muito doido avançou e deu uma coronhada na cabeça do camponês Pedro Greco que se virou e revidou aplicando um golpe de caratê. O policial ainda tentou reagir, mas era tarde demais: o camponês aplicou um segundo golpe de caratê e tomou a arma em uma fração de segundos... O sargento estava morto, o camponês foi preso e junto com ele outros 13 colegas participantes do encontro, enquanto José Honorato, o vereador Nestor Veras e outros escapavam pela porta dos fundos da cooperativa. Umas 20 horas depois, eu e meu sogro, pai de José Honorato, fomos presos. O meu sogro foi liberado e eu fiquei preso por 48 horas. Como eu não tinha participado do encontro também fui liberado.

Após o encontro, José Honorato passou a viver na clandestinidade. A situação piorou ainda mais após uma visita de um grupo de camponeses famintos e desalojados que procuraram José pedindo orientação sobre o que fazer para salvar suas famílias – eles estavam amontoados na beira da estrada que liga Prudente à cidade de Pirapó. Era um grupo de 10 pais que caminharam a pé por mais de 120 Km em busca de uma solução, ou pelo menos uma orientação, para algo que pudessem fazer para salvar as famílias já prestes a morrer de fome e sede... Eram mais de 40 pessoas. José Honorato, após ouvir o relato teria aconselhado a irem até a fazenda mais próxima que pertencia ao Dr. Ramos solicitar algum trabalho e mantimentos (comida) para as mulheres e os filhos não morrerem de fome. Mas resolveram fazer diferente: o grupo foi para a fazenda do Dr. Ramos e levou milho, feijão, óleo, arroz, carne e mandioca – e aí todos puderam dormir uma noite em paz. Tudo aconteceu em uma tarde do mês de setembro de 1952. A polícia foi avisada. No dia seguinte foram presos e, mantidos sobre tortura, confessaram que foram orientados pelo camponês José Honorato Lemos... Com essa informação a polícia dobrou a vigilância numa perseguição implacável em todo o Estado de São Paulo. E assim foi até o desfecho final.

Em 23 de fevereiro de 1953, segundo os Jornais da época (“O Dia”, “Terra Livre” e “Notícias do Hoje” – todos de São Paulo), José se encontrava em Ameliópolis, um pequeno lugarejo nas imediações de Presidente Prudente. Ali fez algumas compras de mantimentos, o bastante para a semana: arroz, feijão, óleo, farinha e algumas coisas mais. Por lá ele demorou um pouco, batendo papo, jogando conversa fora. Nesse momento foi reconhecido por alguém... Percebendo isso tratou de ir embora. Caminhou por uma estrada de terra, carregando os sacos de compra. Parou em um boteco, tomou uma cerveja e continuou andando. Então percebeu que ao longe, bem distante e atrás, vinha um caminhão em disparada. Ele diminuiu a marcha. Quando o caminhão chegou mais perto, José Honorato desconfiou e deixou o leito da estrada, caminhando de vagar, com um chapéu cobrindo os olhos para não ser reconhecido. Percebeu o caminhão parar, ouviu o matracar das armas e em seguida os disparos: eram de 10 a 12 policiais disparando ao mesmo tempo. Ele caiu de frente para o chão. Só teve tempo de dizer: “sou um pai de família...”. Nada mais...

Fuzis e metralhadoras atirando a curta distância, à queima roupa. Os projéteis (balas) varando o corpo por todos os lados, coberto de sangue misturado com terra, farinha e óleo das compras. O corpo foi imediatamente enrolado com sacos de estopas, jogado em cima do caminhão que saiu em alta velocidade – era entre 17 e 18 horas. O corpo ficou escondido em Ameliópolis e enterrado na calada da noite pela polícia – segundo as informações de um jornal da época. Pois alguém observou tudo, deu o alarme e toda a imprensa, todas as rádios de São Paulo anunciaram e condenaram o bárbaro crime cometido pela polícia paulista. Houve protesto por toda a parte. Dias depois eu estava participando de um ato no centro do professorado paulista na Avenida da Liberdade em São Paulo. O presidente do sindicato, o jornalista Freitas Nobre, deu abertura a reunião. O professor universitário, intelectual, João Taibo Cadornega lembrou o nome do camponês assassinado pela polícia do governador Lucas Nogueira Garcez... Houve apartes sobre o assunto: falou a professora Dr. Helena Guimarães, a professora Ofélia Botelho e a professora Elisa Branco – todas da Federação de Mulheres do Estado de São Paulo. Elas condenaram a polícia como autora do bárbaro crime. A professora Elisa disse: “Com certeza houve mãozinha dos grilheiros da região que tem culpa no cartório...”. Alguns advogados, entre eles o Dr. Sandoval Peixoto e o Dr. Rio Branco Paranhos, bem como os Doutores Érico Magalhães de Prudente e Milton Pereira (de Santo Anastácio), todos juntos moveram ações condenando a polícia. Mas foi em vão: a polícia alegou que o camponês morto era um terrorista perigoso, um desqualificado. Com isso a polícia falou mais alto: no começo foi um barulho, mas no final foi um deixa-pra-lá. Ficou por isso mesmo.

Firmino Gomes da Rocha,

seu amigo, cunhado e amigo de todas as horas.

Um comentário:

  1. Caramba tio Firmino, só agora fiquei sabendo deste blog, que legal... esse texto é incrível, fico muito feliz em saber mais sobre o meu avô, apesar de não tê-lo conhecido, tenho muito orgulho da sua luta e coragem dele. Fundador do município Mirante do Paranapanema e, talvez, o primeiro grande líder de camponeses do Pontal do Paranapanema.
    Tio, te desejo toda a saúde do mundo, pois vc é uma das pessoas mais importantes da nossa família... com memória e conhecimento invejáveis. Manda um beijão e um abraço para toda nossa família ai de BH.
    Terminei o meu doutorado em Roma em dezembro, no momento estou morando com os meus pais em Medianeira-PR.
    Abração.

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